Naquela fria madrugada de inverno, os plantonistas, não escalados, descansavam após exaustivas horas de trabalho. Faltam quinze minutos para que meu tempo de sobreaviso termine quando percebo o responsável pela telefonia entrando no quarto. Ansioso, ouço-o dizer, com sua voz de barÃtono:
- Doutor Panico, tem um “chamadinhoâ€. Engraçado, o barraco, e a rua tem o mesmo número treze.
Depois de olhar para o meu jaleco surrado, percebi que esse companheiro de luta estava precisando de descanso. Deixei os questionamentos de lado e me dirigi à portaria do Posto para compor a equipe. Não surpreso, me deparo com o Conceição, o motorista da ambulância, já presente. Ele era uma pessoa bonÃssima, mas que convivia com uma particularidade desagradável: expelir saliva quando falava. Depois de perceber que ele tinha somente três dentes no lado esquerdo do maxilar inferior, compreendi o porquê a sua saliva encontrava uma avenida no lado direito da boca, que acabaria encontrando uma única barreira, a pessoa que estava a sua frente.
Antes que ele falasse algo, dei um passo à direita e, em seguida, insinuei num tom de ironia:
- Nesse curto espaço de tempo, acabo de me tornar um reacionário de direita.
Encabulado, Conceição perguntou-me se conhecia o Benito, o novo auxiliar de enfermagem.
Como ele não havia sido apresentado, achei que deverÃamos esperá-lo na ambulância. Demorou pouco tempo para que Benito aparecesse carregando a maleta de medicamentos. Era um jovem, moreno, magro, de estatura mediana. Receoso de ser a nova vÃtima da saliva do Conceição, ele abriu a porta da ambulância e disse:
- Acho melhor o doutor sentar ao lado do motorista. Assim o senhor não receberá o vento frio da madrugada.
- Consciente de que seu desejo era me tornar um escudo, agradeci a “gentilezaâ€.
Durante o trajeto, sem dar oportunidade para que para que fosse interrompido, Benito passou a contar uma história comovente da sua infância. Ao observar a sua astúcia, murmurei:
- Ele não deverá ser enfermeiro por muito tempo.
Enquanto vou saindo para respirar o ar fresco da madrugada, ouço um grito ensurdecedor vindo do barraco. Preocupado, perguntei ao meu auxiliar o que havia ocorrido.
- Pouca prática, doutor.
Ciente do corrido, Conceição se encarregou de espalhar aos funcionários do Posto. Desde então, Benito passou a ser chamado pelos colegas de “Pouca Práticaâ€.
No plantão seguinte, me deparo com Conceição, com uma expressão de espanto:
Muito requisitado, Benito passou a ser chamado de Bendito, mas devido à qualidade do seu serviço ele receberia alcunha de Maldito.
Certo dia, surpreso, deparo-me com o Benito de paletó e gravata na portaria do Posto. Depois de cumprimentá-lo, ele externou que estava vivendo um bom momento na sua nova atividade. Ao me despedir, um tanto confuso, perguntei-me:
- Seria uma realidade o que acabara de ouvir?
Depois de um momento de reflexão, externei, num tom murmúrio:
- Porque não acreditar, afinal, todos nós fomos um dia “pouca práticaâ€.