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Crônicas

Só me restou o silêncio

Dr. Luiz Fernando Panico(*)

Ao solicitar que a paciente entre, ouvi a minha secretária dizer:

- Não há ninguém para ser atendido. Doutor, chegou a conta da luz, do telefone, o IPTU. Por falar em conta, o IPVA do carro do senhor vence esse mês.

Enquanto eu ia anotando o que teria que pagar, a minha auxiliar deu mais uma “boa†noticia:

- Doutor, o “cabeça branca†trouxe as faturas.

“Cabeça Branca†era um senhor franzino encarregado pelo escritório de contabilidade de levar mensalmente aos consultórios as faturas que envolviam os custos sociais dos funcionários junto ao INSS.

Ao entrar na minha sala, ele me cumprimentou amavelmente e, depois de me entregar as faturas, disse num tom de voz pausada:
- O doutor sabe como é o início do ano. Depois do décimo terceiro, as pessoas vão às compras. Agora chegou o momento do governo receber o que é seu. É um toma cá, dá lá. Está vendo essa maleta? São cobranças que estou levando aos consultórios médicos

- Então hoje é dia dos médicos “choraremâ€.
- O carnaval está aí para que eles possam esquecer suas magoas.

Tão logo me despedi daquele senhor, perguntei a minha auxiliar, com uma discreta ironia:

- Tem mais conta para pagar?
- Não, doutor. A Carmem está sala de espera.

Com formação universitária, ela era uma mulher de sensibilidade aguçada sobre os problemas do cotidiano. Certa vez, ainda jovem, ela me externou o desejo de ser médica. Na oportunidade, eu procurei lhe mostrar que a medicina era uma profissão excitante, mas que exigia não só sacrifício, mas, sobretudo resignação.

Naquele dia, ela me contou que seus pais, já idosos, sentiram a necessidade de voltar as suas origens, uma pequena cidade do interior. Estava ciente de que a falta do seu carinho iria lhe trazer momentos de solidão, mas ela tinha a consciência que essas adversidades seriam recompensadas pela determinação com que se entregaria aos objetivos que tinha traçado para a sua vida. Em seguida, ela me fez uma pergunta surpreendente:


- O que doutor faria com quarenta reais e trinta centavos?
- Não poderia ser um pouquinho mais?
- O que o senhor quer dizer com isso?
- Esse é um valor aproximado de quanto os médicos conveniados recebem por uma consulta.
- Assim como os médicos, os professores estão exaustos de tanto “chorarem†por um salário mais digno. Muitos deles já perderam o brilho nos olhos nas salas de aula.

Quando isso acontece, só restará ao povo se lamentar mais uma vez por seu trágico destino.

- As suas palavras não deixam de exprimir a verdade.

Ao perceber que eu estava me tornando um paciente perante aquela mulher, deixei de lado os questionamentos da classe médica:

- Esse valor a que você se referiu faz parte de suas despesas pessoais?
- Diariamente, doutor.

Ao notar que ela estava ainda tensa, usei a descontração na seqüência do diálogo:

- Dá direito à sobremesa?
- Ãgua pura. - disse ela, com uma expressão de tristeza.
- Então já sei o porquê da sua perda de peso.
- O doutor está me achando magra?

Ao perceber que tinha sido crítico com a sua estética, o que mexe com o ego da mulher, emendei:

- Magra, porém bonita.
- Ao ouvir palavras tão dóceis, até que esses quarenta reais e trinta centavos me trazem um pouco de conforto.
- Por que esta quantia mexe tanto com sua cabeça?
- Com o bolso também.
- Então pare!
- Não posso. Para que o senhor sinta como dependo dele, hoje fiquei desesperada quando ele escapou da minha mão.

Aproximando os dois primeiros dedos da mão, continuou ela:

- Embora fosse pequeno, eu não tive dúvidas em virar a casa de “pernas para o ar†para encontrá-lo.

Não querendo acreditar, coloquei os óculos e constatei que os dedos quase se tocavam:

- Neste espaço só passa pensamento?
- Mas ele passa também. O médico com quem me trato disse que eu poderia ficar “doente do bolsoâ€, mas iria me curar, enquanto isso...

Antevendo o que ela poderia dizer, emendei:

- Os médicos vivem de ilusão:
- Doutor, eu acho que seus colegas precisam ser decididos naquilo que entenderem como sendo justo, senão acabarão tomando “comprimidos†cada vez mais amargos.
- Há anos tenho procurado mostrar essa realidade a minha classe, mas pelo andar da carruagem só nós restarão supositórios.

Ao fazer uma expressão de quem havia concordado, ela insinuou:
- Três vezes ao dia, doutor?

Um tanto perplexo, só me restou o silêncio.





(*) médico obstetra-ginecologista

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