Maria era auxiliar de enfermagem. Nordestina de baixa estatura, ela tinha os olhos comprometidos por uma catarata, que limitava as suas atividades profissionais. Os colegas de trabalho acreditavam que o hábito de cantar hinos religiosos teria uma relação com a sua angústia pela perda progressiva da visão.
No início de dezembro, ela me convidou para um culto ecumênico no domingo de Natal. Naquele dia seriam realizado as festividades de seu aniversário. O sol escaldante, a aglomeração de pessoas era um empecilho à minha vontade, mas consciente de que não deveria me omitir, fui ao encontro de Maria. Ao chegar ao local, deparei-me com um casarão antigo, de janelas enormes e mal conservadas, onde barulhentos ventiladores tornavam os diálogos quase impossíveis. Atento aos detalhes desse mundo desconhecido, percebi em certo momento que havia, no recinto, bancos, aparentemente adaptados, com pregos expostos à espera de uma pessoa desatenta. Intrigado ante a essas adversidades, perguntei-me: “Seria a fé das “Marias” algo sublime ou o pastor tem algo de convincente a nos dizer?”.
Logo em seguida, adentra ao recinto o pastor e seu auxiliar. Ao perceber que aquelas criaturas não me eram estranhas, voltei o meu pensamento no tempo. Ao me conscientizar de quem seriam eles, não me contive e acabei exclamando a minha surpresa num tom de voz que provocou um desconforto às pessoas mais próximas:
- É o Pé de Cana e o Pinguim!
Pé de Cana era Pedro Cassiano, um mulato alto e magro que tentou a sorte como cantor no bairro boêmio da Lapa. A sua voz era fanhosa pelas geladinhas que tomava com freqüência, as quais faziam com que esse paraibano, em companhia do seu amigo inseparável, “Madame Satã”, quase sempre bêbados, não conseguissem terminar as suas apresentações. Com o passar do tempo, ele ficaria conhecido por seu apelido formado pelas iniciais do seu nome. A imagem atual era de um senhor obeso e calvo. Seu rosto apresentava as espinhas do passado, parcialmente escondidas pelo uso de óculos enormes, de lentes espessas a corrigir sua miopia. A camisa era bem justa, o que limitava os movimentos de seus braços, enquanto a calça apertada tornava visível a sua região escrotal.
Pingüim era um moreno baixo, obeso, de braços curtos e pés pequenos, com uma postura “dez para as duas”. O uso de um terno preto surrado dava ao conjunto o estigma do seu apelido. Quando sorria, mostrava a exuberante dentadura feita pelo conhecido protético “Boca Fina”, que, ao completar o seu trabalho, fazia questão de dizer aos seus pacientes: “Agora o amigo ficou com boca de gente fina”. Esse senhor que há muitos anos imaginava fazer do seu oficio uma arte, entretanto, para seu desespero, não eram poucos aqueles que procuravam os seus serviços, mal conseguiam fechar a boca corretamente.
Quando iniciou o ato religioso, “Pé de Cana” pediu aos presentes que se sentassem, e cantassem com fervor, o hino que tinha o seguinte refrão: “O dinheiro que você ganhou não é só seu, foi Deus quem lhe deu, foi Deus quem lhe deu”. Atordoado pelas surpresas, fiz a vontade do “pastor” e acabei soltando o meu corpo pesado sobre o banco com um prego. Naquele instante, senti uma súbita e intensa dor. Não me contendo, acabei externando um sentimento de revolta, e voltei a ficar de pé rapidamente.
Maria, que passava recolhendo os dízimos, ao perceber que me sentia desconfortável, disse, numa expressão bem típica de sua região:
- Não se avexe, homem de Deus, senta e continue a cantar com fervor o hino do pastor.
Ao lhe fazer menção de que me sentia bem em pé, coloquei o dizimo na sacola de Maria, enquanto a outra mão alisava suavemente a região atingida pelo prego.
No final do ato religioso, Maria veio ao meu encontro, e me fez um convite impensável:
- Doutor, o nosso “pastor” ficaria muito feliz em recebê-lo novamente nesse recanto de Deus.
Conscientes da minha presença, ”Pé de Cana” e Pinguim se mantinham à distância. Com os olhos fixos naquelas duas criaturas, sem demonstrar contrariedade, disse:
- Voltarei num outro dia com mais tempo para conhecer esse “trabalho interessante” dirigido pelo pastor.
- O doutor ficará surpreso e feliz.
- Assim espero, Maria, disse- me despedindo.
Ao deixar o recinto, fiquei a imaginar o que passaria nas cabeças dessas pessoas que usam a fé, principalmente de pessoas humildes, quase sempre com objetivos desumanos. Naquele momento, a angustia se apossou de mim. Depois de repensar sobre o momento que tinha vivido, murmurei num tom de esperança:
O tempo mostrará aos que seguem “míopes”, mesmo no uso de óculos, que a fé das Marias será imaculada.
(*)Ginecologista-Obstetra
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