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Euclides da Cunha nos confins baianos e amazônicos:
Léa Costa Santana Dias
Euclides da Cunha nos confins baianos e amazônicos: impressões de um viajante sobre sertões,desertos e espaços incivilizados
RESUMO
Duas viagens marcam a trajetória intelectual de Euclides da Cunha: a primeira, de setembro a
outubro de 1897, rumo aos sertões baianos; a segunda, de dezembro de 1904 a janeiro de
1906, rumo aos confins amazônicos. As experiências in loco da primeira viagem estão
registradas no Diário de uma expedição e na Caderneta de campo – fontes primárias de Os
sertões. As experiências da segunda viagem estão registradas nos diversos ensaios
amazônicos, que seriam utilizados na composição de Um paraÃso perdido, livro que Euclides
não chegou a concluir. Antes da viagem a Canudos, Euclides vira a região a partir do olhar
alheio, sobretudo através de leituras. Ao chegar, supunha saber o que ia encontrar e sobre o
que teria que falar. Canudos, entretanto, não se encaixou na forma pré-estabelecida e a visão
clara e precisa dos fatos foi desestabilizada. O mesmo aconteceu em relação à Amazônia. O
contato com o novo tornou inviável a correspondência entre duas imagens: a que havia em sua
mente e a que se lhe apresentava perante os olhos. Em razão disso, nos textos permeados
pelas impressões oriundas de tais experiências – os escritos sobre Canudos e os escritos
amazônicos –, percebe-se um observador desnorteado perante o que vê, muitas vezes
oscilante entre a fidelidade às suas próprias conclusões e o compromisso de interpretar o novo
a partir do arsenal teórico de que dispunha. Ao se pensar o texto euclidiano a partir dessa
perspectiva, pretende-se chamar a atenção para a figura de um viajante que parte com uma
função objetiva – revelar aos brasileiros aspectos desconhecidos do próprio paÃs, visando
reverter o hábito nacional de alhear-se de coisas que lhe são caracterÃsticas –, mas que, diante
do novo, percebe-se também um desconhecedor da realidade a que se propõe revelar.
Palavras-chave: Euclides da Cunha; Canudos; Amazônia; viagem; sertão; deserto.
1 Doutoranda em Literatura e Cultura pela UFBA – Universidade Federal da Bahia. Professora de Literatura
Brasileira da UNEB – Universidade do Estado da Bahia.
2 O deslocamento é algo recorrente na vida e na obra de Euclides da Cunha. Em sua
escrita, vislumbra-se o tema da viagem desde seu primeiro artigo, intitulado “Em viagemâ€,
publicado em O democrata, pequeno jornal dos alunos do Colégio Aquino, no Rio de Janeiro,
em 4 de abril de 1884. No texto, a partir das impressões advindas de um passeio de bonde, o
autor protesta contra o avanço da civilização e do progresso representados pela estrada de
ferro, referindo-se a esta como uma ameaça à natureza: “O progresso envelhece a natureza,
cada linha do trem de ferro é uma ruga e longe não vem o tempo em que ela, sem seiva,
minada, morrerá! [...]. Tudo isso me revolta, me revolta vendo a cidade dominar a floresta, a
sarjeta dominar a flor†(CUNHA, 1995, p. 567).
Os traços de sensibilidade idÃlica e romântica do autor direcionaram-lhe o olhar
para o sertão, visto como espaço ainda não atingido pela civilização. Alguns poemas de sua
adolescência são sintomáticos de sua busca de evasão rumo ao interior: “Eu queroâ€, de 1883;
“A cruz da estradaâ€, de 1884; “Fazendo versosâ€, de 1888; “O último cantoâ€, sem data; “As
catasâ€, datado de Campanha, 1895. As palavras ditas ao crÃtico José VerÃssimo, numa carta
datada de 07 de julho de 1904, sempre foram realidade em sua trajetória intelectual e
profissional: “Não desejo Europa, o boulevard, os brilhos de uma posição, desejo o sertão, a
picada malgradada†(CUNHA, 1997, p. 212).
Tendo comungado com os ideais da Escola Militar em seu perÃodo de
efervescência republicano-abolicionista, Euclides revestiu-se de um caráter revolucionário,
transformador. Assim, logo nasceu nele o propósito de adentrar nos sertões assumindo como
“missão†o dever patriótico de explorar a imensidão do paÃs. Duas grandes missões marcam
sua vida. A primeira delas ocorreu ao ser enviado ao sertão baiano pelo jornal O Estado de S.
Paulo como correspondente de guerra. A segunda se relaciona à nomeação para o cargo de
chefe da Comissão Brasileira de Reconhecimento do Alto Purus, na Amazônia. Foram duas
viagens desgastantes. Euclides se retirou de Canudos antes do término do conflito, doente,
com acessos de febre. Na selva amazônica, conforme José Carlos Barreto de Santana,
enfrentou situações as mais adversas, em virtude do esgotamento fÃsico dos integrantes do
grupo e da escassez de recursos materiais (SANTANA, 2001, p. 172), e teve a saúde ainda
mais comprometida. Num trecho da viagem, os expedicionários “tiveram que abandonar as
lanchas a vapor e fazer grande parte do percurso a pé, com canoas arrastadas a pulso. O barco
com os vÃveres e mantimentos naufragou. Chegaram famintos e esfarrapados ao Cujar, uma
das cabeceiras do Purus†(VENTURA, 1998, p. 73).
Comprometido com o ideal bandeirante, desbravador, antes de partir para a
Amazônia Euclides consultou relatos de viagem, relatórios administrativos e mapas de
3
expedições anteriores. Leu Humboldt, Martius, Spix, Agassiz, Bates, Chandless, Tavares
Bastos, Sousa Coutinho e Soares Pinto. Caminho semelhante trilhou-o antes da viagem a
Canudos, ocasião em que empreendeu leituras várias sobre o tema. Em seu primeiro artigo “A
nossa Vendéiaâ€, publicado em O Estado de S. Paulo em 14 de março de 1897, são citados
viajantes e naturalistas, como Martius, Saint Hilaire, Humboldt, Caminhoá e Livingstone.
Desbravar para prestar ao paÃs contribuições cientÃficas é uma das principais razões a mover
Euclides à s viagens. É o que se pode observar numa carta a LuÃs Cruls, datada de 20 de
fevereiro de 1903: “alimento há dias o sonho de um passeio ao Acre. Mas não vejo como
realizá-lo. Nesta terra, para tudo faz-se mister o pedido e o empenho, duas coisas que me
repugnam. Elimino por isto a aspiração – é que talvez pudesse prestar alguns serviçosâ€
(CUNHA, 1997, p. 149). Tais serviços seriam avançar “para lugares nunca cientificamente
exploradosâ€, conforme declara ter sido feito pela Comissão que presidiu na Amazônia
(SANTANA, 2001, p. 171-2). Procedimento análogo é adotado em relação ao sertão de
Canudos. Afinal, segundo ele,
nenhum pioneiro da ciência suportou ainda as agruras daquele rincão
sertanejo, em prazo suficiente para o definir.
Martius por lá passou, com a mira essencial de observar o aerólito, que
tombara à margem do Bendegó e era já, desde 1811, conhecido nas
academias européias, graças a F. D. Mornay e Wollaston. Rompendo,
porém, a região selvagem, desertus australis, como a batizou, mal atentou
para a terra recamada de uma flora extravagante, silva horrida, no seu latim
alarmado. Os que o antecederam e sucederam, palmilharam, ferretoados da
canÃcula, as mesmas trilhas rápidas, de quem foge. De sorte que, sempre
evitado, aquele sertão, até hoje desconhecido, ainda o será por muito tempo
(CUNHA, 2001a, p. 102, grifos do autor).
A carta ao diretor do Observatório Astronômico do Rio de Janeiro, datada de 20
de fevereiro de 1903, é o primeiro registro do interesse de Euclides em realizar uma viagem
ao Acre. E já que o destinatário da carta esteve entre os anos de 1900 e 1902 “à disposição do
Ministério das Relações Exteriores, servindo como Diretor da Comissão de Limites e Chefe
da Comissão de Limites com a BolÃvia†(Apud SANTANA, 2005), a referência a este desejo
parece não ser aleatória. Observação semelhante pode ser feita em relação aos quatro artigos
referentes à Amazônia publicados em 1904, posteriormente incorporados ao livro Contrastes
e confrontos (1907). São eles: “Conflito inevitável2â€, “Contra os caucheiros3†e “Entre o
2 O Estado de S. Paulo, SP, 14 de maio de 1904.
3 O Estado de S. Paulo, SP, 22 de maio de 1904.
4
Madeira e o Javari4â€, publicados em O Estado de S. Paulo; e “Contrastes e confrontosâ€,
publicado em O PaÃs. O posicionamento de Euclides na imprensa a respeito de
acontecimentos relacionados à Amazônia o credenciava como apto a desempenhar atividades
na região. Esforço semelhante empreendeu-o o autor no sentido de viabilizar sua viagem a
Canudos. No intuito claro de convencer Júlio de Mesquita, o dono do jornal O Estado de S.
Paulo, de que ele apresentava o perfil adequado para atuar como correspondente de guerra,
Euclides publicou neste jornal, nos dias 14 de março e 17 de julho de 1897, os dois artigos
intitulados “A nossa Vendéiaâ€, nos quais a rebelião sertaneja é associada ao levante religiosomonarquista
ocorrido na França, na região da Vendéia, de 1793 a 1795. Há de se faze menção
ainda ao fato de Euclides ter partido para a Bahia no inÃcio de agosto de 1897, acompanhando
o marechal Bittencourt, que provavelmente o incluÃra em seu Estado-Maior atendendo a um
pedido de Prudente de Morais, a quem Júlio de Mesquita enviou, em 29 de julho, o seguinte
telegrama:
Quero dever-lhe o favor de conseguir que Carlos Machado nomeie para seu
Estado-Maior o Tenente Euclides Cunha (sic). Este é meu companheiro na
redação do Estado. Tem talento de escritor quanto dedicação de soldado
republicano. Quer prestar serviços à República e preparar elementos para um
trabalho histórico. O sr. compreende quanto, como redator do Estado, me
interesso por esta nomeação. Peço resposta hoje. Júlio Mesquita5 (MORAIS,
1990, p. 71).
Segundo Euclides, a campanha de Canudos teria “a significação inegável de um
primeiro assalto, em luta talvez longa†(CUNHA, 2001b, p. 66) em prol da civilização. Seria
o grande evento histórico capaz de desencadear o processo de incorporação do Brasil Ã
história dos povos, ao lado de outras nações modernas e civilizadas. E representá-lo é o que
propõe a narrativa de Os sertões. Quanto à Amazônia, seu processo de incorporação Ã
civilização estaria representado nas páginas de Um paraÃso perdido, o segundo livro vingador
de Euclides da Cunha, no qual seria vingada “[...] a Hiloe maravilhosa de todas as
brutalidades das gentes adoidadas que a maculam desde o século XVII. Que tarefa e que
ideal!†(CUNHA, 1997, p. 266).
Ao adentrar no sertão baiano e na selva amazônica, quer de forma presencial, quer
por intermédio de leituras, Euclides assumiu o desafio de ser o desbravador de uma terra e de
um povo supostamente ignotos e de dar ao paÃs importantes contribuições cientÃficas.
4 O Estado de S. Paulo, SP, 29 de maio de 1904.
5 À margem deste texto, há uma anotação do presidente Prudente de Morais: “Atendido e respondido – Rio, 29
de julho de 1897†(MORAIS, 1990, p. 71).
5
Segundo o autor, os viajantes que o antecederam teriam sido superficiais em suas leituras. Ao
subestimar os trabalhos de seus antecessores, Euclides se inventou como descobridor de
regiões de certo modo já conhecidas pela ciência, apresentando como inéditos muitos aspectos
já abordados por vários pesquisadores. Uma vez inventado o descobridor, inventou-se por
extensão a descoberta. Daà o alto teor de subjetividade que marca seus textos, muitas vezes
interpretado pela crÃtica como equÃvoco cientÃfico e/ou histórico. Como ilustração das muitas
viagens de nosso autor pelas veredas da subjetividade, lembremo-nos do artigo de 1º de
outubro de 1897, escrito na cidadela de Canudos. Para Euclides, conforme registrado nos
textos anteriores ao 1º de outubro, nada havia em Canudos que sugerisse qualquer
superioridade em relação a outras localidades sertanejas; mas, como em todas as outras,
apenas pobreza, miséria, labirintos de becos substituindo ruas, casas acumuladas em grande
desordem. Segundo o autor, em dois textos escritos em Canudos, datados de 10 e 29 de
setembro6 respectivamente, a cidadela “lembra uma cidade bÃblica fulminada pela maldição
tremenda dos profetas†(CUNHA, 2000a, p. 178), sobre a qual paira uma aparência de morte,
onde “não se lobriga um único habitante7†(Ibidem, p. 178), nem há “nos quintais
abandonados nem o mais tênue traço de um canteiro, um arremedo qualquer de jardimâ€, mas
“toda a velharia de trastes inservÃveis8†(Ibidem, p. 202). Não havendo beleza aparente, esta
necessitava ser construÃda através de estratégias discursivas. É o que se pode conjecturar a
partir da observação dos trechos iniciais da reportagem de 1º de outubro de 1897:
Não há manhãs que se comparem às de Canudos; nem as manhãs sulmineiras
nem as manhãs douradas do planalto central de S. Paulo se
equiparam à s que aqui se expandem num firmamento purÃssimo, com
irradiações fantásticas de apoteose. Douram-se primeiro as cristas altas de
Cocorobó, Poço de Cima e Canabrava e a onda luminosa do dia sulca-lhes,
lentamente ascendendo, os flancos abruptos e ásperos semelhando uma
queimada longÃnqua, nas serras. A orla iluminada amplia-se, vagarosamente,
descendo pelos contrafortes e gargantas das montanhas fimbradas de
centelhas... Depois, a pouco e pouco, um raio de sol escapa-se, tangenciando
as quebradas mais baixas, e sucedem-se rapidamente outros e vingando logo
após a barreira das montanhas o dia desdobra-se deslumbrante sobre a
planÃcie ondulada, iluminando-se repentinamente todas as vertentes das
6 Em 10 de setembro, Euclides se encontrava em Monte Santo. Em “O batalhão de São Pauloâ€, numa referência
rápida, o autor revela ter chegado a Canudos em 15 de setembro (CUNHA, 2000b, p. 271). Esta data, porém,
parece tratar-se de um equÃvoco. Numa descrição mais detalhada, que se encontra na Caderneta de campo,
Euclides assegura ter chegado a Canudos em 16 de setembro (CUNHA, 1975, p. 53), sendo esta a data que a
crÃtica euclidiana tende a aceitar como mais provável (VENTURA, 2002a, p. 54; VILLA, 2002, p. 30). Desse
modo, a reportagem em questão teria sido escrita em 17 de setembro (VILLA, 2002, p. 31). De fato, na
Caderneta de campo, Euclides declara ter escrito algo para São Paulo nesta data (CUNHA, 1975, p. 54).
7 Canudos, 10 de setembro.
8 Canudos, 29 de setembro.
6
serras do Cambaio, Caipã e Calumbi, até então imersas na penumbra
(Ibidem, p. 204-5).
Ainda no mesmo texto, Euclides assegura ter visto pela primeira vez no arraial
“uma manhã enevoada e úmida – persistentemente varada por uma garoa impertinente e fina;
uma manhã de inverno paulista†(Ibidem, p. 205-6). Contudo, é possÃvel que o 1º de outubro
tenha rompido claro e brilhante, conforme hipótese levantada por Marco Villa, a partir de
informações do livro do tenente Henrique Duque-Estrada de Macedo Soares, intitulado A
guerra de Canudos (VILLA, 1999, p. 254). E se, de fato, não houve garoa, Euclides, que
estava em Canudos, provavelmente o saberia. Sendo assim, a descrição de névoas adornando
a manhã ganha um efeito simbólico extraordinário: como o 1º de outubro foi um dos dias
mais violentos e lúgubres da campanha, seria mais coerente que se tivesse iniciado com uma
manhã nublada e fria. Afinal, como falar de esplendor se o que havia em Canudos era a
escuridão, o pavor e o luto? Como falar de luz se “penetrando pelos tetos e pelas paredes as
granadas implodiam nos quartos minúsculos despedaçando homens, mulheres e crianças sobre
as quais descia, à s vezes, o pesado teto de argila, pesadamente, como a laje de um túmuloâ€, e
se os feridos “sofreavam os brados da agonia e os próprios tÃmidos evitavam a fuga, tal o
silêncio, tal a quietude soberana e estranha, que pairavam sobre as ruÃnas fumegantes?â€
(CUNHA, 2000a, p. 207). Como a luz que havia em Canudos vinha dos incêndios, das
explosões das granadas (Ibidem, p. 206), da fuzilaria imensa e da saraivada de balas (Ibidem,
p. 208), convinha que o ambiente onde ocorriam os acontecimentos também fosse adornado
de um aspecto sombrio. A turvação, ainda que ilusória, possibilitava isso, pois firmava no
espaço textual uma “coincidência bizarra†entre a névoa da manhã e a “poeira intensa dos
escombrosâ€. É o próprio Euclides quem propõe a interrelação:
E quando os primeiros tiros da artilharia ressoaram, dando começo a mais
um encontro crudelÃssimo com os nossos selvagens adversários, parece-me
que mais lúgubre se tornou a manhã, agravada pela fumarada negra e espessa
do bombardeio (Ibidem, p. 206).
E se, com o passar das horas, um sol clarÃssimo dissipava as névoas da manhã (Ibidem, p.
213), as ruÃnas que fumegavam dissipavam gradativamente as névoas do pensamento do
autor, sobretudo as que ainda o mantinham vinculado aos mitos e sonhos da adolescência.
Assim como as casas dos sertanejos, ruÃam as esperanças ingênuas do ex-cadete da Escola
Militar, e se instalavam fendas muito profundas em sua forma de entender o Brasil. Segundo
Marco Villa, o 1º de outubro foi o último dia de Euclides em Canudos (VILLA, 1999, p. 254-
61). Roberto Ventura, numa de suas muitas divergências com o historiador a respeito da
7
participação de Euclides na cobertura da guerra, assegura que o correspondente permaneceu
no arraial até o dia 03 de outubro, quando se retirou doente com acessos de febre, dois dias
antes do término do conflito (VENTURA, 2002a, p. 54). Discordâncias à parte, o fato é que as
reportagens de Euclides se interromperam repentinamente em 1º de outubro e não há como
negar que as últimas cenas registradas foram profundamente marcadas pelos momentos
presenciados nesse dia e, sem dúvida, essenciais para o amadurecimento das idéias
trasladadas dos artigos publicados em O Estado de S. Paulo para Os sertões.
Outro aspecto a ser destacado no artigo de 1º de outubro de 1897 diz respeito ao
fato de o novo que se desconhece estar sendo medido pelo já conhecido: às manhãs de
Canudos contrapõem-se “as manhãs sul-mineiras†“as manhãs douradas do planalto central de
S. Pauloâ€, “uma manhã de inverno paulista†(CUNHA, 2000a, p. 204-6). Diante das lacunas
produzidas pelo real com o qual se depara, o autor as preenche com o que supõe ver ou com
aquilo que o visto possibilita uma aproximação. Dessa dinâmica é que resultam – tanto nos
textos sobre Canudos, tanto nos textos sobre a Amazônia – suas muitas comparações com
realidades do mundo entendido como civilizado. Para Euclides, num primeiro momento,
Canudos é a “nossa Vendeiaâ€. A imagem, apesar de inaplicável à realidade sertaneja,
possibilita o estabelecimento de uma ponte entre o conhecido e o desconhecido. Por meio
dela, o autor transpõe, via linguagem, o abismo que acreditava haver entre o interior e o litoral
– o primeiro entendido como bárbaro e o segundo como europeizado. Em sua representação
do universo sertanejo, supostamente não atingido pela ciência e pela civilização, são úteis as
imagens do mundo ao qual se atribuÃa a denominação de culto e civilizado. Disso advêm a
imitação artÃstica de autores de origem francesa, como Taine, Michelet, Thierry e Victor
Hugo; as metáforas relacionadas à história da França e de Portugal; o traslado de mitos da
Antiguidade Clássica (centauro, Anteu, Hércules) e a remissão a signos e histórias da
literatura bÃblica. Essa mesma estratégia de aproximação entre o conhecido e o desconhecido
pode ser observada nas leituras de Euclides a respeito do espaço amazônico. É assim que, de
imediato, a Amazônia lhe parece “uma página inédita e contemporânea do Gênesis9â€
(CUNHA, 1995, p. 230). Assim como já ocorrera perante as manhãs de Canudos, é o espanto
que conduz Euclides a comparar a cidade de Belém, no norte do Brasil, com outras realidades
já conhecidas, conforme se percebe numa carta ao pai, Manuel Rodrigues Pimenta da Cunha,
escrita em Manaus, no dia 30 de dezembro de 1904:
9 A metáfora aparece em Academia Brasileira de Letras (Discurso de recepção). O texto, integrante da Obra
completa, de Euclides da Cunha (CUNHA, 1995, p. 229-45), foi publicado inicialmente na Revista da Academia
Brasileira de Letras, volume IV, Rio de Janeiro.
8
Nunca São Paulo e o Rio terão suas avenidas monumentais, largas de 40
metros e sombreadas de filas sucessivas de árvores enormes. Não se
imagina, no resto do Brasil, o que é a cidade de Belém com seus edifÃcios
desmesurados, as praças incomparáveis e com sua gente de hábitos
europeus, cavalheira e generosa (Apud BARROS, 1992, p. 46).
Tamanhas as associações euclidianas entre o conhecido e o desconhecido que suas narrativas,
se refiram ao sertão baiano ou à selva amazônica, assemelham às narrativas de viagens do
século XVI. Nestas, conforme destaca Francisco Ferreira de Lima,
o medir, pesar e comparar são atividades básicas fundamentais, por uma
razão muito simples. Trata-se de aproximar o inaproximável, de maneira que
esse real estranho ganhe um contorno de credibilidade e possa ser, mercê do
modelo prévio, visualmente compreendido. É o meio mais eficaz para conter
o desamparo do leitor, que só sabe ver o novo pelo velho (LIMA, 1998, p.
92).
Porém, nas relações entre novo e velho, muitas vezes a analogia não se consolida. É possÃvel
que, no dia 1º de outubro de 1897, não tenha havido em Canudos “uma manhã enevoada e
úmidaâ€, “uma manhã de inverno paulista†(CUNHA, 2000a, p. 205-6), conforme sugeriu
Euclides da Cunha. Também contrariando suas expectativas não estavam em Belém o atraso e
a barbárie, o que lhe causou “a maior surpresa de toda a viagem†(Apud BARROS, 1992, p.
46). Para Canudos, a metáfora da Vendeia – porque fechada, unÃvoca, definitiva – tornou-se
inviável. Convinha registrar a pluralidade. É assim que, sobremodo impactado com o que
presenciara em Canudos e/ou descobrira a partir de sua experiência individual de pesquisa, o
autor que trazia definido o esboço de um livro com duas partes constituintes – “A natureza†e
“O homem†–, ao qual daria o tÃtulo de A nossa Vendéia, conforme plano de trabalho
publicado no Jornal do Comércio, em 23 de dezembro de 1897, resolveu, ainda no mês de
dezembro de 1897, conceder-lhe um tÃtulo mais representativo – Os sertões.
Nos dois casos o que se tem é um escritor em sua ânsia de perscrutar sertões,
desertos e espaços incivilizados. Conforme Roberto Ventura, selva e sertão são vistos por
Euclides “como desertos por seu isolamento geográfico e povoamento rarefeito, e sobretudo
por serem territórios ainda não explorados pela ciência, que os viajantes evitavam e que os
cartógrafos excluÃam de seus mapasâ€. Para ele, os termos sertão e deserto se atrelam ao
bravio, indômito, desconhecido, não desbravado, “tudo aquilo que está fora da escrita da
história e do espaço da civilização: terra de ninguém, lugar da inversão de valores, da barbárie
e da inculturaâ€. Seus espaços seriam “territórios misteriosos, fora da história e da geografia,
9
que não foram mapeados de forma sistemática†(VENTURA, 1998, p. 65). Selva amazônica e
sertão baiano apresentados como espaços incivilizados necessitavam, então, de alguém a lhes
incorporar à civilização. Esta é a missão da qual Euclides se apropria. Afinal, no seu entender,
conforme destaca Valentim Facioli, ao paÃs do presente, periférico e incivilizado, urgia
transitar o mais breve possÃvel de sua “condição pré-civilizada e ‘sem história’ para a
condição plena de civilização†(FACIOLI, 1998, p. 37). Tarefa urgente e necessária, pois,
ainda conforme Valentim Facioli, no Brasil da época conviviam em conflito permanente “o
desejo de ser como o centro do processo, que coincidia com o progresso e a civilização, e a
consciência de estar fora do lugar, ou, num outro lugar, visto este como atraso e barbárieâ€
(FACIOLI, 1990, p. 95-6).
Antes da viagem ao Acre, numa carta a José VerÃssimo datada de 24 de junho de
1904, o autor assim justifica a importância de sua empreitada: “[...] se as nações estrangeiras
mandam cientistas ao Brasil, que absurdo haverá no encarregar-se de idêntico objetivo um
brasileiro?†(CUNHA, 1997, p. 208). Em relação a Canudos, não tendo a história chegado até
lá (CUNHA, 2001a, p. 734), conforme acreditava Euclides da Cunha, cabia a ele, na condição
de historiador, trazê-la ao centro das atenções, restituindo-a da condição de “tapera miserável,
fora dos nossos mapas, perdida no deserto, aparecendo, indecifrável, como uma página
truncada a sem-número das nossas tradições†(Ibidem, p. 502). Assim, para representar a
cidadela enquanto espaço vazio, o não-lugar, o escritor se apropria de uma metáfora que
funde três belas imagens – “a do ambiente (a linha se fecha numa cercadura de montanhas); a
do grafismo (um parêntese, um hiato); a do recuo ao tempo edênico†(BARROS, 1992b, 68):
“Canudos tinha muito apropriadamente, em roda, uma cercadura de montanhas. Era um
parêntese; era um hiato. Era um vácuo. Não existia. Transposto aquele cordão de serras,
ninguém mais pecava†(CUNHA, 2001a, 735). Por isso, era o “homizioâ€, “onde não chegaria
a correção dos poderes constituÃdosâ€. Nessa construção, conforme destaca Roberto Ventura,
Euclides faz lembrar a expressão de Barleaus, traduzida por Chico Buarque em uma de suas
músicas da seguinte forma: “Não existe pecado do lado de baixo do equador†(VENTURA,
1995, p. 605). Posteriormente, em À margem da história, ao falar dos seringueiros da
Amazônia, Euclides recorreu à mesma imagem, ao “doloroso apotegma – ultra aequiotialem
non peccavi – que Barleaus engenhou para os desmandos da época colonial†(CUNHA, 1999,
p. 12).
Ao chegar a Canudos, Euclides já havia visto a região a partir do olhar alheio,
sobretudo através de leituras – o que o fazia acreditar conhecer aquilo que seria abordado em
sua escrita, não havendo, portanto, aspectos inusitados a serem revelados. Todavia, Canudos
10
não se encaixou na forma pré-estabelecida e a visão clara e precisa dos fatos foi
desestabilizada. O mesmo aconteceu em relação à Amazônia. O contato com o novo tornou
inviável a correspondência entre duas imagens: a que havia em sua mente e a que se lhe
apresentava perante os olhos. Havendo a contraposição da realidade à imagem livresca, temse,
na perspectiva de Lourival Holanda Barros, um “caso singular de visão transversa; quando
não de visão astigmata†(BARROS, 1992a, p. 45). Assim, semelhante ao que ocorre nas
narrativas de viagens tradicionais, nos escritos euclidianos há um observador desnorteado
perante o que vê, muitas vezes oscilante entre a fidelidade às suas próprias conclusões e o
compromisso de interpretar o novo a partir do arsenal teórico de que dispunha. Há um eu
extasiado perante um real que ultrapassa expectativas prévias e precisa ser nomeado e
transformado em linguagem: na Amazônia, o narrador se depara com um “excesso de céus
por cima de um excesso de águas10†(CUNHA, 1995, p. 230); em Canudos, com um excesso
de informações – muitas vezes controversas – diante das quais se reconhece incapaz de operar
uma sÃntese. Para designar essa relação deslumbrada do eu euclidiano com o real empregamos
o termo “alteridadeâ€, conforme acepção que lhe confere o pesquisador Francisco Ferreira de
Lima em seus textos sobre literatura de viagens (1998 e 2009). Assim o fazemos porque, no
caso de Euclides, passado o encantamento breve e fugaz propiciado pela experiência do olhar
– aqui entendida como alteridade –, o eu (narrador) que se compraz em ver retoma seus
parâmetros, valores e códigos. Nesse instante, opera-se aquilo que Francisco Ferreira de Lima
preconiza para os textos de viagens.
[...] a cintilação cede lugar à comparação, em que se medem a superioridade
ou inferioridade do descoberto. Já não se trata mais de uma relação
intersubjetiva entre descobridores, senão de uma outra entre sujeito e objeto,
na qual o sujeito estuda atentamente seu objeto com o fim de dominá-lo ou
seduzi-lo, a depender de como se ponha a correlação de forças entre eles.
O desejo de ver é substituÃdo pelo desejo de saber que, a seguir, organizará a
apropriação. Saiu-se, enfim, da esfera da alteridade para a da diferença
(LIMA, 1998, p. 62).
Porém, no ato de interpretar/nomear o outro, muitas coisas escapam dos limites da
segurança cientÃfica. A fascinação exercida pelo que se desconhece – alteridade – já não pode
mais ser exorcizada. Antes, provoca no narrador uma espécie de vertigem, que se converte em
“delÃrio imagético†a se repetir obsessivamente ao longo dos textos, por meio do vigor verbal
que lhes é caracterÃstico – pleno de subjetividade, comumente interpretada pela crÃtica como
10 A metáfora aparece em Academia Brasileira de Letras (Discurso de recepção). O texto, integrante da Obra
completa, de Euclides da Cunha (CUNHA, 1995, p. 229-45), foi publicado inicialmente na Revista da Academia
Brasileira de Letras, volume IV, Rio de Janeiro.
11
equÃvoco cientÃfico e/ou histórico. Através da recorrência a estratégias discursivas
pertencentes aos campos da ciência e da arte é que o real se torna representável. Com isso, a
oscilação alteridade / diferença, tÃpica dos viajantes, ganha um novo componente: a
circularidade. Não mais se parte da alteridade à diferença: estas se alternam continuamente
durante a narrativa. As leituras e releituras feitas a partir das experiências de viagem deslocam
o saber previamente elaborado. Entra em cena, então, a figura de um viajante que parte com
uma função objetiva – revelar aos brasileiros aspectos desconhecidos do próprio paÃs, visando
reverter o hábito nacional de alhear-se de coisas que lhe são caracterÃsticas –, mas que, diante
do novo, percebe-se também um desconhecedor da realidade a que se propõe revelar. Nessa
dinâmica, o eu que (re)descobre é orientado pela própria (re)descoberta, não apenas revelando
o que acreditava saber, mas o que passa a saber. O choque do não saber transmudado em
saber propicia a Euclides experiências inusitadas, que requerem um longo tempo para serem
repensadas e reorganizadas em linguagem: cinco anos são necessários para que Os sertões
seja apresentado à nação como livro vingador; os três anos e meio que separam o
desaparecimento do autor de seu retorno da Amazônia foram insuficientes para que viesse a
público seu segundo livro vingador – Um paraÃso perdido. Nos dois casos, porém,
superabunda o desejo, pois é este que move Euclides às viagens: desejo de ver, saber, revelar
e interferir nos destinos da nação. Apenas a tÃtulo de ilustração, lembremo-nos de algumas de
suas intervenções ou propostas plausÃveis para os destinos da nação. O livro Peru versus
BolÃvia foi decisivo para que o Acre fosse definitivamente incorporado ao Brasil. Nos textos
sobre Canudos – sobretudo n’Os sertões (CUNHA, 2001a, p. 682) e no artigo de 15 de agosto
de 1897 (CUNHA, 2000a, p. 92) –, o autor apresenta a educação como saÃda possÃvel para a
integração dos sertanejos ao que ele compreendia como civilização. Em maio de 1904, em
dois artigos11 publicados em O paÃs, Euclides chega a sugerir alternativas para amenizar os
efeitos da seca no Nordeste, como a construção de açudes e poços artesianos – proposta que já
aparecera n’Os sertões – e o desvio das águas do rio São Francisco para as regiões atingidas
pela estiagem (CUNHA, 1995, p. 153-60). Nos ensaios amazônicos, Euclides revela
preocupação ambiental numa época em que isso não era comum e denuncia a exploração a
que eram submetidos os trabalhadores na selva. No artigo “Entre os seringais12â€, são expostas
as condições hostis do trabalho semi-escravo a quem eram submetidos, nos seringais do Acre,
os emigrantes nordestinos, principalmente cearenses. Trata-se de um dos primeiros textos do
paÃs a abordar a infração aos direitos humanos em território nacional (Ibidem, p. 558-60). E o
11 Plano de uma cruzada, I e II.
12 O texto foi originalmente publicado na revista Kosmos, ano 3, número 1, Rio de Janeiro, em janeiro de 1906.
12
pioneirismo das denúncias euclidianas não se restringe apenas ao Brasil. Segundo Leopoldo
Bernucci,
Este ensaio antecede por um ano as acusações de BenjamÃn Saldaña Rocca
em seus artigos para os jornais de Iquitos La Sanción e La Felpa de agosto
de 1907. Antecipa-se ainda Euclides aos seguintes autores e suas respectivas
obras: Por América del Sur (1908) de Rafael Uribe Uribe, as denúncias de
Walter H. Hardenburg no periódico britânico Truth (1909) e em seu livro
The Putumayo – The Devil’s Paradise (1912), Las crueldades en el
Putumayo y en el Caquetá (1910) de Vicente Olarte Camacho, Blue Book of
the Putumayo (1912) de Roger Casement e, finalmente, The Putumayo Red
Book (1913) de Norman Thomson (BERNUCCI, 2011, p.12-3).
Na tradução em linguagem de seus muitos desejos de ver, saber, revelar e
interferir nos destinos da nação, Euclides se vê invadido pela vertigem ou crise interpretativa
provocada pelo outro que parece recusar nomeação. Então, permeada de delÃrio imagético
passa a ser sua tentativa de apreensão do real. Alteridade, diferença e subjetividade são as
vivências que o norteiam e desnorteiam na organização das impressões advindas de suas
experiências de viagem.
Segundo Walnice Nogueira Galvão, o ideal de bandeirante é um traço constitutivo
da elite letrada brasileira. “Nossa literatura sempre se voltou para a hinterlândia, desde o
inÃcio com os cronistas e depois com os viajantes, e mais tarde transitando do sertanismo ao
regionalismo†(GALVÃO, 2002, p. 166). Lembremos que no Diário de navegação, de Pero
Lopes de Souza, já se percebe a preocupação com a interiorização (GIUCCI, 1993, p. 190).
Em O Brasil não é longe daqui; o narrador, a viagem, Flora Süssekind (1990) demonstra
como o narrador romântico da prosa de ficção brasileira, surgida em meados do século XIX,
incorpora em seus escritos a visão pictórica dos desenhos dos paisagistas e as estratégias
discursivas norteadoras dos relatos de viagem, ao mesmo tempo mantendo diálogo com o
narrador de viagens, o cartógrafo e o paisagista, e atuando como historiador e cronista de
costumes. Tal prática, acredita a autora,
[...] parece sugerir, entre outras coisas, que essas figuras de narrador
necessitaram obrigatoriamente de um olhar-de-fora e de uma exibição –
consciente ou não – de certa “sensação de não estar de todo†na sua
composição. Necessidade que funciona como uma espécie de indicador
prévio de deslocamento, distância, desenraizamento, marcas registradas –
ora presentes sem que seus autores se apercebam disso, ora trabalhadas
propositadamente por eles – da escrita de ficção brasileira. Como se o
narrador literário procurasse por vezes incorporar à sua voz por desejo
próprio, como traço a ser minuciosamente modulado, desterro – para
empregar expressão de Sérgio Buarque de Holanda em RaÃzes do Brasil –
13
que de qualquer modo o acompanharia. Sobretudo em se tratando, de um
lado, de uma sociedade em que literatos parecem sempre falar entre si, sem
maiores aproximações com outras camadas sociais que não a burocracia a
que pertencem ou a classe senhorial de que dependem, e, de outro, de paÃs
sempre dependente, como é o caso do Brasil (SÜSSEKIND, 2008, p. 20-21).
A autora destaca ainda que, em muitos casos, o que parece garantir a confiabilidade do relato,
além da própria experiência da viagem, é o fato de ser elaborado a partir de um “olhar
estrangeiroâ€, “de alguém de foraâ€, que teria testemunhado o narrado (Ibidem, p. 49). Mas a
viagem, em Euclides, ganha peculiaridades diferenciadas. Apesar de instigado à busca da
autenticidade nacional, à semelhança de tantos outros pensadores de seu tempo e de perÃodos
anteriores, o autor se recusa a ver o paÃs com “um olhar-de-foraâ€, como se fosse um
desterrado na própria pátria, e procura romper com a “sensação de não estar de todoâ€, tÃpica
de muitos viajantes e paisagistas que propuseram hipóteses de Brasil. Todavia, conforme
Flora Süssekind,
se é problemática essa fundação de uma imagem original, singular, de Brasil,
é igualmente difÃcil olhar para a paisagem brasileira real, que lá está de fato,
quando o ponto de vista a ser adotado para fitá-la é pré-dado, quando o modo
de vê-la se acha previamente determinado por toda uma série de crônicas,
relatos, notÃcias, romances, por uma sucessão de miradas, estrangeiras ou
não, que lhe demarcam os contornos, tonalidades, sombreados (Ibidem, p.
32).
Por isso, mostra-se tão tensa e conflituosa a escrita euclidiana. Seus textos, por
mais que tenham sido produzidos sob o aval da ciência do tempo, estão a questionar os
pressupostos teóricos da prática cientÃfica, em sua tentativa de interpretação dos fenômenos
atinentes à realidade brasileira: “[...] ainda não existe um Maudsley para as loucuras e os
crimes das nacionalidades†– alerta-nos Euclides a respeito de Canudos (Cunha, 2001a, p.
781). Seus textos, por mais próximos que estejam das estratégias discursivas literárias, estão a
tecer indagações sobre a capacidade representativa da linguagem. Para Euclides, diante de
realidades que parecem irrepresentáveis, o que há é a “fragilidade da palavra humanaâ€
(Ibidem, p. 779). Então, sendo ele um homem das ciências e das artes, e estando ele próprio a
questionar/problematizar as estratégias de representação destes discursos, seus textos
registram uma suspeita quanto à capacidade de representação do “real†por meio da
linguagem, como a indicar/sugerir a impossibilidade de se chegar à verdade e à essência das
coisas. Por outro lado, são suas viagens pelos sertões, desertos e espaços incivilizados que o
fazem resgatar da ignorância nacional o outro até então desconhecido e inscrever a seu
14
respeito uma verdade peculiar – a verdade da natureza humana, sempre oscilante, ambÃgua,
paradoxal, antinômica, conflitante. Esta amplitude do olhar, por sua vez, só lhe foi possÃvel a
partir do contato com o horror da guerra no sertão baiano. É a experiência de Canudos,
conforme sinaliza Lourival Holanda Barros, a responsável pela correção da “visão astigmataâ€
euclidiana, “quando, passado o impacto cultural, ele depura, na interpretação laboriosa, sua
visão sertaneja†(BARROS, 1992a, p. 47). Afinal, antes de Canudos, ainda segundo o mesmo
autor, os sertões eram “mero adendo do Nordeste. Eram o hinc (sic) sunt leones onde os
cartógrafos antigos situavam a barbárie, o lugar temido da inversão de seus valores. O outro,
por excelência†(Ibidem, p. 47). Quanto aos sertões amazônicos, o contato inicial com o novo
também se dá a partir de uma visão astigmata. Mas também lá esta se desfaz.
[...]. Como se uma rede de relatos, descrições, páginas e páginas de viajantes
armasse o seu olhar e a simples aparição da paisagem sonhada o desarmasse
logo. É a partir desse confronto entre olhar previamente direcionado,
paisagem real e olhar agora desarmado – mas consciente da figuração
utópica que o habita – que Euclides constrói o seu relato sobre a Amazônia.
Não deixa de observar a paisagem em prol da manutenção da velha “imagem
subjetivaâ€. Tampouco abandona as descrições anteriores para se deixar
“impregnar†ou impressionar diretamente pelo que vê (SÜSSEKIND,
2008, p. 32-3).
Desse modo, conforme alerta Flora Süssekind, a atitude intelectual de Euclides é oposta à dos
nossos primeiros ficcionistas, que, apesar de se dizerem autores de obras “brasileiras†e
“originaisâ€, prescindiam, em suas observações, da paisagem brasileira real.
Porque sua razão e seu desenho já estavam pré-dados. E, mesmo que se
afirmasse fazer “cópia diretaâ€, olhar com os próprios olhos, para figurar um
Brasil que se desejava absolutamente original, paradisiacamente singular e
sem divisões sociais, raciais ou regionais de monta ou que não pudessem ser
classificadas, etiquetadas, homogeneizadas pela perspectiva una do “viajante
naturalistaâ€, era preciso fechar os olhos ou fazer ouvidos de mercador para
os livros europeus nas estantes e bibliotecas públicas, para uma população
com 70% de analfabetos, para a influência econômica inglesa, para os leilões
de escravos, rebeliões e separatismos, para o povo livre sem ocupação
possÃvel, para os trajes europeus de lã da senhora de Valença em pleno sol
escaldante e mais e mais (Ibidem, p. 33).
Na contramão desta tendência, Euclides volta-se à paisagem real, seja nos sertões baianos,
seja na selva amazônica, e chama a atenção de seus compatriotas para os tantos brasileiros
mantidos à margem da história, da geografia e da literatura nacionais como o outro
desconhecido e indesejado. Ao ser trazido à cena principal o outro ignorado, máscaras foram
15
retiradas e desvendadas muitas coisas ocultas há muito; os brasileiros puderam contemplar-se
a si mesmos num espelho, cujo reflexo era horrendo: “o desgracioso, desengonçado, tortoâ€
(Cunha, 2001a, p. 207) das caatingas de Canudos irmanava-se, na miséria e na opressão, aos
sertanejos semi-escravizados dos seringais do Acre. Esta uma das razões pelas quais, passados
mais de cem anos de sua publicação, os textos euclidianos seguem mantendo sua atualidade e
firmando-se como uma arma de denúncia das injustiças e desigualdades desencadeadas no
interior da nação.
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